• sexta-feira, 17 de janeiro de 2020




                    Era uma manhã fria na bela ilha de Cinnabar. O céu azulado gradativamente se tingia de tons alaranjados e esverdeados a medida que o sol se reerguia para mais um dia. Naquele horário, grande parte do continente de Kanto dormia, e não era diferente na grande mansão do grande Sir Schereave ou, como era conhecido naquela parte do continente, Dom Arcanine. Nem mesmo os canoros Pidgeys naquela manhã queriam sair de seus ninhos, preferindo desfrutar o confortável clima tão raro na ilha.
                    A quietude dos corredores da mansão era absoluta, na noite anterior um jantar de gala havia sido dado com direito à uma banda de Kricketune’s de Sinnoh. Três pequenas criaturas, no entanto, não combinavam com aquele ambiente, pois, totalmente despertas, apenas mantinham a quietude para que o plano cuidadosamente elaborado desse certo. Dois pequenos Growlithe e uma Vulpix ainda menor se esgueiravam pelo corredor de piso em mármore gelado, o local destinado era a cozinha e o objetivo eram as sobras do grande bolo de Sitrus Berry comido no jantar na noite anterior.
                    — Hariq, você ficará aqui de vigia enquanto eu e o Wilk iremos pegar o bolo e descer pelas escadas até a sede do clube, ok? – A pequena Vulpix repassou o que havia sido planejado.
                    — Isso não é justo, Rubi – protestou Hariq – Porque eu tenho que ficar de vigia? Eu sou mais alto!
                    — Porque você é covarde, ficaria com medo e estragaria tudo. Além disso, o plano é meu!
                    O Growlithe estufou as bochechas enquanto emburrava a cara e cruzava os braços.
                    — Tá bom, mas só dessa vez! Dá próxima quem fica de vigia é você! – Ela respondeu apenas levando um dos dedos aos lábios pedindo silêncio.
                    Ela e Hariq caminhavam com passos tão suaves que eram praticamente imperceptíveis até mesmo aos ouvidos mais aguçados. Logo o corredor foi substituído pela imensa cozinha cinzenta com dois grandes balcões de madeira sobrepostos por placas de ardósia negra. A Sra. Mimi, a cozinheira, ainda não aparecera por ali, mas isso era sinal de que deveriam se apressar pois logo ela estaria ali para preparar o café da manhã.
                    Os pokémons de fogo se aproximaram da grande geladeira que possuía, no mínimo, três vezes a altura de ambos. Normalmente eram proibidos de ficar dentro da cozinha. Primeiro pelo intenso movimento que normalmente havia ali, a presença de três crianças apenas serviria para a atrapalhar; segundo porque a alimentação deles normalmente era rigidamente regulada. Como eram pokémons que futuramente seriam os responsáveis por defender o grandioso ginásio de Cinnabar, não poderiam de maneira alguma estar fora de forma ou com a saúde comprometida.
                    Vulpix abriu a geladeira, as sobras do bolo estavam na prateleira superior, bem além de seu alcance. Ela bateu a pequena pata no chão em irritação, com certeza aquilo daria mais trabalho do que o esperado.
                    — Hariq, me deixe subir no seu ombro para eu alcançar o bolo – pediu Rubi.
                    — O que? Não! Por que eu não posso subir no seu?
                    — Por que você é mais alto, por que a ideia foi minha e eu te quebro na porrada se não me obedecer – ela sabia que o primo ia amarelar, sempre fora melhor que os dois em brigas.
                    — Ok, ok! Você venceu... – concordou o canino, se abaixando para que ela pudesse subir – Ai! Cuidado com meu cabelo!
                    — Foi mal! – e colocou um dos dedos sobre os lábios.
                    Com o auxílio do pokémon ficava fácil para ela alcançar o bolo almejado. Ela estendeu as pequenas mãos para puxar a bandeja de prata do fundo da geladeira. Infelizmente o bolo com glacê vermelho era mais pesado do que parecia e ela teve de concentrar toda sua força e equilíbrio para conseguir segurá-lo.
                    — O que vocês pensam que estão fazendo?  - A voz da Sr. Mimi foi ouvida na porta oposta pela qual entraram. Haviam demorado demais, já era hora de começar o preparo do café da manhã.
                    No entanto, o susto devido o flagra fora tão grande que fez o jovem Hariq dar um pulo e com isso desequilibrar a Vulpix em seus ombros, fazendo com que a pesada bandeja que carregava caísse sobre a cabeça da pokémon de fogo e cobrindo todo seu pequeno corpo de glacê, pão de ló e geleia de sitrus berrie. Ambos acabaram caindo para trás com o peso e Rubi sentou-se furiosa enquanto tentava tirar todos os restos destruídos do bolo da cara.
                    — Hariq, seu ENERGÚMENO! Eu vou matar você! – gritou ela preparando-se para partir para cima do primo.
                    No entanto, antes que pudesse fazer qualquer coisa, seu corpo foi erguido no ar, juntamente com o de seu primo devido ao Confusion lançado pela cozinheira. Ela balançou o corpo desesperadamente tentando sem libertar, porém sem sucesso.
                    — Olha a bagunça que vocês fizeram na cozinha e o estado de vocês! – comentou a pokémon do tipo psíquico balançando a cabeça negativamente.
                    — Me solta, Sra. Mimi – reclamou Rubi anda se chacoalhando.
                    — Irei soltar, mas é melhor que se limpem rapidamente antes que...
                    — O que está acontecendo aqui? – Uma nova voz fez o estômago da Vulpix gelar ao ser ouvida na cozinha.
                    — Ma-mamãe...
                    Uma belíssima e imponente Ninetales surgiu na cozinha ainda vestida com um belo roupão de seda branca. Fora atraída pelo escarcéu na cozinha e agora observava a cena em sua frente com um ar de reprovação tão gélido que fazia os outros presentes sentirem calafrios de tanto medo.
                    — Mamãe, nós...
                    — Silêncio, Rubi!
                    — Tia Elinor, eu...
                    — Você também, Hariq – e dirigindo seu olhar para a Mr. Mime que encarava a cena apreensiva, disse educadamente – Srta. Mimi, por favor, peça às empregadas que ajudem na limpeza dessa bagunça. Eu darei um jeito nesses dois.
                    A Mr. Mime assentiu e colocou os dois filhotes no chão, liberando os dos poderes psíquicos. A grande raposa de fogo fez um sinal  para que eles a seguissem e saiu andando elegantemente, demonstrando toda a elegância e sutileza que a colocaram naquela posição. Assim que já estavam quase no final do corredor, ela dirigiu seu olhar para o sobrinho Growlithe, que, apesar de um pouco sujo, não estava nem perto da situação de sua cria.
                    — Vá até o seu quarto e se limpe. Não quero te ver perambulando pela cozinha.
                    — Sim, senhora – concordou o pequeno imediatamente e saiu correndo dali, aliviado de não ter levado uma bronca. Agora restava apenas a pequena raposa que já preparara mil justificativas em sua cabeça.
                    — Mamãe, eu...
                    — Eu não quero ouvir nenhuma palavra, Rubi – cortou a mais velha – Irei te dar um banho!
                    — Não, mãe! Banho não! Eu já tomei banho ontem!
                    — Devia ter pensado nisso antes de se enxovalhar de bolo – Respondeu secamente enquanto pegava a pequena raposa em seus braços e levava até o quarto.
                    Elinor colocou a filha em uma banheira de quarrycast enquanto ligava a torneira deixando a água quente aquecida pelo calor vulcânico da ilha cobrisse parcialmente o corpo. Com uma escova e bastante sabão foi tirando toda substância açucarada e grudenta dos pelos avermelhados.
                    — Não devia se comportar assim – comentou ela baixo.
                    — Foi um acidente, mamãe – resmungou a raposa enquanto sua cabeça era esfregada, a água lhe era terrivelmente incomoda.
                    — Não importa... Deveria agir como o Pokémon nobre que é, ainda mais agora... – a voz da mais velha sumiu.
                    — Ainda mais agora o que?  - questionou a pequena virando-se para observar a mãe – Do que a senhora está falando?
                    A Ninetales, contudo, não lhe respondeu, encarava a janela de vidraça multicolorida em sua frente com olhos distantes. Rubi observou olheiras presentes sob os olhos do rosto normalmente imaculado, juntamente com uma expressão de cansaço.
                    — Mamãe?
                    — Nada, querida. Deixe-me acabar com isso.
                    Jogou uma boa quantidade de água na raposa vermelha para retirar toda a espuma de seu corpo, secou-a e arrumou-a, prendendo os cabelos ruivos em uma trança. Depois de um longo período e uma Vulpix mal-humorada, terminou tudo o que tinha para fazer.
                    — Não gosto de você cuidando de mim como se fosse um bebê. – reclamou com os braços cruzados e a cara emburrada.
                    — Espere até estar na realeza onde tem mil pessoas achando que podem cuidar de você melhor do que você mesma. – levantou-se e se dirigiu à porta – Seu castigo será decorar toda a lição quatro do seu livro de latim.
                    — Mãe! São mais de 10 páginas! O Hariq e o Wilk não ganharam castigo!
                    — Eu não sou a mãe deles – respondeu Elinor simplesmete – E quanto mais cedo você começar, mais cedo irá terminar – E saiu fechando a porta atrás de si.
                    As horas se passavam enquanto a pequena Vulpix, sentada em sua mesa de estudos recitava toda a lição numa tentativa vã de decorá-la ainda no dia de hoje. Seus pensamentos estavam longe, passando pelo canteiro de tulipas que começava a desabrochar nos jardins lá fora.
                    Uma leve batida foi ouvida em sua porta e ela murmurou um “entre” sem nem ao menos olhar, achando que era sua mãe. A porta se abriu e ela ouviu um som de passos ligeiros e logo a mesma foi fechada.
                    — Ei, Ru! O que está fazendo? – Ela ouviu a voz de Wilk e rapidamente pulou de sua carteira e saltou sobre o pokémon, aplicando-lhe uma chave de pescoço.
                    — Seu traidor! Você tinha que estar vigiando!  - murmurou entre dentes.
                    — Desculpa, desculpa.... – o Growlithe pedia chorando.
                    — Vocês dois, façam silêncio! – Pediu o outro com urgência na voz, sem soltar o primo, a garota olhou para ele. 
                    — O que você quer?
                    — Solte ele, vai matá-lo! – sussurrou exasperado, ela revirou os olhos.
                    — Ele é um traidor! – respondeu a pokémon, porém soltando o primo.
                    — Não sou traidor. Quando sua mãe apareceu eu me assustei e corri, mas não fiz por maldade.
                    — Então além de traidor é covarde. Honre o sangue que você carrega!
                    — Espera aí! Não foi pra isso que a gente veio aqui! E vocês estão fazendo muito barulho! – Hariq achou que estava na hora de interromper a discussão. Rubi apenas deu de ombros e voltou à sua mesa de estudos.
                    — O que vocês querem? – perguntou.
                    — Nós descobrimos uma coisa incrível. Parece que existem uns pokémons muito estranhos lá naquele prédio novo que construíram na cidade, pokémons pré-históricos. Imagina só como devem ser. A gente tava pensando em ir lá dar uma olhada.
                    Os olhos da raposa brilharam ao pensar na aventura, na possibilidade de conhecer seres que habitaram e dominaram o planeta há milhares de anos. Nunca iria imaginar que ainda seria possível que essas criaturas vagassem sobre a terra, a tecnologia que os humanos criavam para compensar sua falta de poderes ficava cada vez mais fascinante. Porém, o brilho logo se esvaiu ao lembrar que a mãe a colocara de castigo e provavelmente ainda havia mais da metade das páginas para ela decorar.
                    — Eu não posso ir. – ela apoiou o rosto nos dois braços cruzados sobre a mesa – Minha mãe me mandou decorar um milhão de páginas.
                    — A gente vai e volta antes dela ver. – Insistiu Hariq.
                    — Sabe o quão encrencada eu estaria se ela descobrisse que eu fugi? Provavelmente ficaria de castigo até completar 57 anos.
                    — Ela nem vai saber. Quantas vezes ela já veio aqui desde que te pôs de castigo? Nossos pais acabaram de entrar no escritório com aquele pokémon de Alola e com certeza irão levar horas para sair de lá.
    Era verdade, de toda a manhã e parte da tarde que estivera dentro do quarto, sua mãe não aparecera por ali sequer uma vez. A comida havia sido trazida por uma das funcionárias da casa, mas não tivera nem sinal da grande raposa. Seu castigo era decorar todas aquelas páginas, não era? Não implicava que necessariamente teria de ser naquele dia ou naquelas horas.
    – Vamos lá!
    Os filhotes deixaram o quarto sorrateiramente. Hariq fora na frente para verificar se os pokémons ainda estavam em reunião, todo cuidado era pouco para criaturas de audição extremamente aguçada.  Assim que percebeu que os mais velhos não estavam vendo-os, fez sinal para que os outros dois o seguissem.
    A porta da sala estava entreaberta, eles precisariam passar pela fenda estreita sem serem vistos para chegar até a escadaria e de lá teriam caminho livre até a entrada. Mal ousando respirar, Wilk foi o primeiro a atravessar, sendo seguido por Rubi, porém, a os ouvidos atentos captaram seu nome ser pronunciado no interior do aposento e, mesmo já estando fora de vista de seus pais, ela não pode conter o impulso de refrear seus passos para escutar o que estava sendo dito.
    — Eu não posso permitir que ela vá ainda, é apenas uma criança – ouviu a voz de sua mãe.
    — Isso foi acordado desde que ela nasceu, Elinor. Não posso romper o tratado e a aliança de anos que temos com Alola – Dessa vez ela ouviu a voz de seu pai.
    — Mas ela é jovem demais! Nunca entenderia...
    — Rubi... – A pequena raposa ouviu a voz do primo sussurrando atrás de si – Rubi, venha logo! – Ela levou o dedo aos lábios para pedir que se calassem, não poderia perder o que estava sendo discutido.
    Os irmãos balançaram a cabeça negativamente e rumaram ao seu destino inicial, pois não queriam ser aqueles que estariam lá quando a prima fosse pega em flagrante simplesmente por agir como uma tonta. Esta simplesmente ignorou-os e continuou a escutar. Dessa vez quem estaria falando era um antigo amigo de seu pai, o mesmo para quem o jantar havia sido dirigido na noite anterior, Rookie Kapiolani, um Incineroar pertencente a um treinador famoso de Alola.
    — Não se preocupe, Rubi será tratada com todo respeito e carinho quando se casar com meu filho.
    As pernas da pokémon tremeram. Casar? Do que eles estavam falando? Teriam enlouquecido? Ela não queria se casar agora e talvez nunca, muito menos com alguém que nem conhecia.
    — Maior respeito e carinho seriam se a deixassem crescer livre.
    — Elinor... – começou o pai.
    — Eu sei Fergus, não diga mais nada.
    — EU NÃO VOU ME CASAR!
    A pequena raposa abriu a pesada porta de cedro com tanta forca que fez uma marca na parede contra a qual se chocou. Os olhos castanhos tão expressivos agora brilhavam pela formação das lágrimas que agora escorriam pelo seu rosto. Os três presentes a encararam com uma expressão de surpresa, certamente não esperavam que ela estivesse ouvindo.
    — Rubi, o que está fazendo aqui? – perguntou a Ninetales, ainda chocada pela decisão.
    — EU NÃO VOU ME CASAR! – gritou ela mais uma vez.
    — Isso não é assunto para você, Rubi. Volte para seu quarto – fora Fergus quem falara a seguir. A imponente voz do Arcanine ecoou nas paredes da sala.
    — Como não é assunto para mim? Vocês querem que eu case!
    Fergus nada disse em resposta, apenas foi até a Vulpix e a pegou em seus braços. A filhote chorava e se debatia com todas as forças porém estas eram irrisórias perto dos músculos poderosos do Arcanine. Foi deixada mais uma vez em seu quarto, porém desta vez com a porta trancada.
                    Rubi começou a correr de um lado para o outro do quarto, precisava dar um jeito de sair dali. Seu primeiro alvo foi a janela, sem pensar duas vezes a raposa socou o vidro desta, espatifando-o e causando cortes em sua mão, no entanto, os caixilhos do vidro formavam um espaço estreito demais para que ela conseguisse passar. Sem arrumar outra solução, começou a lançar seu corpo contra a porta com repetidos Quick Attacks. Embers não adiantariam, sabia que todas as portas dos quartos da mansão eram feitos de uma madeira sintética que não entraria em combustão.
                    Os minutos se passaram e viraram horas. Em um determinado momento, a raposa percebeu que seus esforços eram inúteis e apenas lhe restava uma das únicas armas que as crianças ainda possuem, o choro.  Ao cair da noite, restava apenas um corpo encolhido em si mesmo, abraçado aos próprios joelhos e encolhido em meio as sombras do quarto.
    A porta do aposento se abriu, revelando a grande dama de fogo. Era impossível dizer o que se passava em sua expressão e a pequena Vulpix não fez questão de olhar. Ela pegou a filha nos braços e colocou na cama, sentando-se ao seu lado e por um longo momento permaneceu ali, passando a mão nos cabelos vermelhos e, por fim, dando-lhe um beijo na bochecha.
    — Mamãe... Eu não quero me casar – murmurou a voz quase num sussurro, como a de alguém já cansado de lutar.
    — Amanhã conversamos sobre isso Rubi.
    — Por favor...
    Elinor suspirou, endireitando a postura e olhando para um ponto inespecífico do quarto.
    – Tudo começou quando você nasceu, foi um evento importante pois fazia um tempo significativo que eu e o seu pai queríamos ter um filhote. O senhor Kapiolani também havia tido uma filhote há pouco tempo e ele e sua família vieram para cá a convite de seu pai para uma comemoração. Você e a filha dele estavam dormindo em um quarto quando um ladrão invadiu o perímetro. Era um Persian horrendo! Seu pai nunca teve boa relação com esses pokémons.
    “Talvez ele não soubesse qual deles era você ou não se importasse, o fato é que acabou levando as duas consigo. Porém, logo percebemos o que tinha acontecido. Fergus e Kapiolani ficaram furiosos e foram atrás deles, conseguiram-no interceptá-lo quase saindo da ilha, porém, ao ver que estava encurralado ele fez a coisa mais terrível que um Pokémon poderia faze!. Ele lançou-as ao mar.”
    “Ambos os pokémons pularam no mar para tentar salvá-las e embora a água seja potencialmente tóxica para criaturas de fogo, você conseguiu sobreviver, diferente de Nina, cujo próprio pai a resgatou sem vida. Fergus ficou arrasado. Por conta de uma inimizade dele a filha de um amigo havia se perdido. Então ele prometeu que quando você estivesse mais velha, iria se casar com o filho dele para que Kapiolani tivesse, em parte, um pouco do que perdera.”
    A cabeça de Rubi girava, ela não se lembrava de ter passado por tudo aquilo. Difícil seria, afinal, era apenas uma bebê, talvez esses acontecimentos seriam o motivo para o fato da raposa de fogo possuir tanta aversão por pokémons felinos.
    — Mas mamãe, a promessa não foi minha. Não é justo que eu tenha que cumpri-la. Por favor, não me deixe ir – suplicou Rubi.
    Ela pode perceber a mandíbula da mãe travar-se em resposta ao seu pedido e a mesma se levantar com um ar solene.
    — Quando se é um pokémon nobre como nós Rubi, promessas representam honra e valem mais do que a vida. Quando você for mais velha irá me entender. – e dizendo aquilo deixou o quarto sem se despedir da Vulpix que ficara aos prantos.
    ***
                    Ela movia as patas repetidamente contra o solo, tirando grandes porções de terra. Seus dedos já estavam em carne viva e sangravam, porém ela não se importava, tudo o que precisava fazer era cavar e cavar repetidamente. Não importava que estavam procurando por ela, não importava que naquele momento eles deveriam estar achando que era ela louca. Para início de conversa, duvidava se sequer um dia haviam gostado dela. A terra escura molhada pela chuva da noite anterior era lançada para o lado e já  havia formado um monte disforme de tamanho considerável.
                    Vendo que havia cavado uma profundidade de pouco mais de um metro, ela saltou para fora para observar a buraco que havia feito. Após isso, se dirigiu a uma pequena lagoa próxima onde bebeu grandes quantidades d’água. Ela observou seu reflexo na água que, apesar de ainda haver vários resquícios da criança que ela fora, para Rubi, ali estava a imagem de uma pokémon completamente diferente. Seu corpo se desenvolvera, as caudas ficaram mais longas, ela estava no auge de sua beleza naquele estágio evolutivo.
                    Sim, havia se casado, para toda e sua completa infelicidade. Podia admitir que os anos ao lado de Barkan não foram os piores, ele era gentil e a havia tratado bem, mas podia sentir a frieza por trás de todas as ações do Torract. Ele não a amava e ela, além de não o amar, odiava pokémons felinos. O clima de Alola não era tão diferente do de sua casa e a vida ali sempre fora recheada de  luxos e riquezas; e, por muito tempo isso bastou para ela conseguir viver nessa fantasia de casas de bonecas que era sua vida. Fingir estar bem, comer para manter-se viva na crença de que um dia toda essa mentira se tornasse uma realidade distorcida onde ela pudesse estar em paz consigo mesma.
                    Ela olhou as próprias unhas ainda cheias de lama e sangue, normalmente teria surtado com sua própria falta de higiene, mas naquele momento aquilo lhe parecia insignificante. Ela se aproximou do de um amontoado de panos dentro de uma cesta que havia trago da mansão. Seu estômago revirava e o corpo inteiro tremia, como ela queria não ter que fazer isso, como ela queria que o mundo acabasse ali mesmo e levasse com ele tudo que ela havia sido, sonhado e amado até aquele momento.
    Limpou as mãos no próprio vestido e abaixou-se para perto do cesto de onde tirou um pequeno embrulho enrolado em panos arroxeados. Seu filho, o filhote que havia saído do ovo há algumas horas e que por algum motivo não havia sido bem quisto por Arceus naquele mundo. Tocou-o com seus lábios enquanto sentia o leve perfume adocicado, mui único, que jamais pertenceria outra vez àquele mundo. Ele era tão pequeno, os pelos brancos e macios tão típicos daqueles nascidos com a forma específica de Alola, um pequeno anjo de gelo que outrora fora seu mundo.
    Ela colocou o pequeno e imóvel corpo na terra fria. Não parecia certo deixá-lo ali, à beira de um lago qualquer, no entanto, sua criaturinha não seria enterrada junto da família do pai, eles não mereciam tê-lo ali. Ela bem reparou todo o olhar de desprezo dirigido a ele ao notarem que o pequeno não era do tipo fogo. Porém, mal sabiam eles, que seu lindo filhote ao invés de herdar toda a prepotência e ira das criaturas de fogo, havia herdado a quietude e doçura do gelo, tamanha essa que tanta pureza não seria merecedora desse mundo.
    Quando lançou a primeira mão de terra, o choro copioso atingiu seus olhos. Era como se finalmente levasse um choque de realidade e realizasse que seu pequeno realmente se fora. Ela ajoelhou-se no chão sem forças e vagarosamente jogou montes de terra ali até o buraco estar completamente cheio.
    Do resto que se passou, ela pouco teve lembranças. Apenas deitou o jovem corpo à beira da cova agora coberta de seu filho e se deixou ficar ali. O tempo foi se passando, talvez tenham sido horas ou dias, ela sentiu o amanhecer e o anoitecer, chuva, sol, vento. Até que algo ou alguém levantou o pequeno corpo em seus braços. Ela até tentou reagir, mas seu corpo emagrecido não parecia ser capaz de responder. As pálpebras foram se fechando lentamente e ela entrou em um mundo de sonhos confusos.
    ***
                    Despertou em uma cama de lençóis macios com um suave aroma de flores campestres. As janelas estavam abertas deixando penetrar a suave luz do sol e o vento fresco agitava as cortinas. Por que tudo aquilo lhe parecia tão estranho e ao mesmo tempo tão familiar? Vozes conversavam no corredor, sussurradas, abafadas, mas ela não fazia questão de saber quem falar. Ia e vinha de um mundo de sonhos e sensações de modo que não soube mais distinguir o que era realidade das cenas confusas que passavam por sua cabeça.
                    Vez ou outra, sentia tocarem-lhe o corpo com carícias e ouvia vozes falando com ela, porém por mais que as vozes lhes fossem conhecidas, distingui-las parecia uma tarefa demais trabalhosa para sua mente. Também alimentavam-na, davam-lhe líquidos, tudo era engolido de forma automática. Foi após um sonho agitado com constantes choros agudos e constantes que ela sentiu-se recobrar a consciência.
                    Sentou-se na cama, o corpo empapado de suor de modo que todos seus cabelos grudavam-se em seu corpo. Sua visão turva aos poucos foi se normalizando e o quarto foi entrando em foco. Aos poucos via os móveis escuros de madeira nobre e um grande tapete felpudo de cor vinho, no canto havia uma imensa arca de brinquedos e a parede coberta por desenhos infantis. Foi necessário algum tempo até perceber que estava em seu antigo quarto. Os olhos moveram-se para algo que antes não estava ali, um colchão de aspecto confortável sobreposto por lençóis bagunçados.
                    Não compreendia o que estava fazendo ali. Esperava ainda estar em Alola, provavelmente internada em algum centro pokémon por dizerem que ela havia perdido o juízo. Ela levantou-se e saiu andando pelos corredores da casa. Não sabia direito seu objetivo, mas precisava estar distante. Aquelas paredes que outrora lhe trouxeram conforto, agora somente causavam-lhe uma sensação de pânico, como se trouxessem o anúncio de uma tragédia premeditada.
                    Rapidamente chegou à porta que dava para o jardim da frente, porém antes que pudesse ganhar a cobertura do céu noturno, dois braços a seguraram firmemente. Ela insistiu empurrando o corpo magro pra frente e os braços começaram a ceder levemente.
                    – Pare Rubi!
                    Era a voz de sua mãe carregada de uma tonalidade abalada entremeada ao desespero. O coração dela acelerou e o corpo apresentou uma leve hesitação, há quanto tempo não ouvia a voz de sua progenitora? No entanto, não deixou-se ceder, fazendo força novamente para se livrar dos braços da mulher, podia ainda ser menor do que ela, mas não era mais criança.
                    — Rubi, por favor, pare... – Pediu Elinor mais uma vez, o tom de voz suplicante a fez parar e só então percebeu o próprio tremor de seu corpo e as lágrimas que escorriam copiosamente.
                    Ela virou-se para a mãe, os olhos castanhos brilhavam de tristeza permeada por uma raiva mal controlada. A Ninetales também chorava. Podia identificar dor em seu olhar, mas não conseguia encará-la por muito tempo. Não culpava a mãe, afinal, o que acontecera era uma infelicidade do destino. Porém seu lado racional não era capaz de poupar-lhe da dor que sentia ao encará-la.
                    — Me desculpe, Rubi... – pediu a mais velha abraçando-a. Rubi não esboçou reação, nem sabia o que poderia dizer ou fazer. Apenas continuou parada como um boneco de lata, oco por dentro.
                    Ela retirou os braços da mãe ao redor de seu corpo gentilmente.
                    — Só me deixe sozinha por um tempo – as palavras saíram espontaneamente de sua boca, sua voz estava rouca e falha pela falta de uso.
                    — Se eu te soltar de novo posso te perder.
                    — E eu preciso de um tempo para me encontrar – as palavras pareceram surpreender a mãe, que apenas a olhou nos olhos assentindo.
                    Rubi caminhou pelo jardim escuro, aos poucos deixando a área da casa. Caminhava sem um destino fixo até notar que estava próxima à casa de seu mestre, em uma praça onde ela e seus primos brincavam constantemente quando eram filhotes. Quase podia visualizar em sua frente a última brincadeira de Super Equipe de Resgate que terminara em uma briga entre os três, ela era o grande Moltres, o lendário que a equipe dos primos teria de derrotar.
                    Um movimentar perto de si a fez notar que ela não estava sozinha. Sentado em um banco a luz de um poste estava seu mestre, a cabeça já totalmente calva e a barba branca evidenciava sua idade. Vestia-se com as costumeiras roupas elegantes que eram sua marca registrada e nos olhos estavam os clássicos óculos escuros arredondados de cor negra. Como ele conseguia enxergar à noite com esses, ela não fazia ideia. Blaine encarava o céu em sua frente suas mãos seguravam uma bengala de madeira elegantemente esculpida.
                    Ela nunca havia sido treinada por ele, na verdade nunca recebera treinamento nenhum na vida, mas amava-o da mesma forma. Um amor incondicional que fora herdado de seus pais. Aproximou-se vagarosamente fazendo movimentos sutis para captar-lhe a atenção. Ao vê-la ali, ele deu um pequeno sorriso.
    — Não esperava encontrá-la aqui - fez um gesto para que a raposa se sentasse ao seu lado.
    Não houveram palavras de condolência, ficaram apenas parados observando o vento tocar a relva e algumas poucas Buterfrees voando pelo ar. A raposa imaginou se o seu treinador de Alola dissera ao mestre o motivo de ter mandado-a de volta. Recostou seu corpo junto ao do homem, e ele era surpreendente quente para um humano.
    — Eu sei o que você sente – começou, ela levantou-se para olhá-lo – Acho que de todos ou pelo menos da maioria por aqui, eu sou aquele que mais compreende o que você está sentindo.
    Ele acariciou sua cabeça suavemente e retirou os óculos. Rubi viu pela primeira vez os olhos negros e profundos que estavam marejados.
    — A verdade que vai tirar disso depois de muito tempo é que essa dor nunca passará. Ela vem e volta como a lava de um vulcão, as vezes o vulcão explode, mas no fim você aprende a conviver com ele.
    Ela escondeu o rosto nas roupas do mestre, não queria que ele a visse emotiva.
    — O nome dela era Angeline – ele disse apenas, mas ela entendeu.
    “Bale” quis dizer para ele, o nome que carregaria consigo para o resto da vida. Infelizmente os humanos eram incapazes de ouvir as vozes dos pokémons.  Blaine a abraçou carinhosamente e ficaram por um longo período daquela forma. Aquele era todo conforto que poderiam dar um ao outro, mas naquela noite fora o suficiente.
    — Talvez você ache isso absurdo, porém mesmo assim vou lhe dizer. Meu neto acabou de fazer 14 anos e logo partirá em jornada, creio que mais pela insistência do pai do que vontade dele do que pela própria. Ele também carrega uma grande dor dentro de si. Talvez lá você encontre um novo caminho e um lugar onde possa chamar de lar.
    E os dois continuaram observando as estrelas até que uma a uma elas desaparecerem com a chegada da alvorada.

    { 7 comentários... read them below or Comment }

    1. Carol, que capítulo lindo! Consigo ver o carinho que você coloca em suas crônicas e cada Pokémon do time. Mesmo que eu tenha visto tão pouquinho sobre a Rubi foi um choque saber sua história, sua criação e a maneira como ela enxerga o mundo, isso mudaria o conceito que qualquer um tem sobre ela. E ela era tão nova... é interessante imaginar o tanto que ela ainda tem a crescer na fic por ser apenas uma Vulpix. Apesar de tantos traumas, espero que ela consiga olhar para trás lá no futuro e enxergar a esperança de uma vida melhor, que essas perdas não a assombrem para sempre.

      Você construiu muito bem o começo, meio e fim, da infância ainda cheia de expectativas, para a notícia que a devastou e por fim a tragédia. O texto está muito bem escrito também, cada palavra foi escolhida com cuidado para que nos colocássemos no lugar da Rubi. A frase que mais me marcou foi: "Mas mamãe, a promessa não foi minha. Não é justo que eu tenha que cumpri-la." E isso não acontece com tantos de nós durante a vida, como se sentíssemos que temos que pagar pelas escolhas e vontades de nossos pais? Uma crônica maravilhosa, mal posso esperar para ver mais desse grupo :3

      ResponderExcluir
      Respostas
      1. Oi Canas <3 Esse capítulo foi especial e um pouco difícil de se escrever, eu fiquei com o coração na mão, mas fui em frente (tudo culpa do Dento que incentivou). Sim, ela era uma criança e não merecia passar por nada disso, ela vai ser uma das, se não a personagem que vai ter mais evolução em toda a história, embora devo admitir que depois desse capítulo será bem mais difícil trabalhar com a personagem.
        Muito obrigada por ter lido esse capítulo, fico muito feliz que esteja gostando dessas histórias pq te admiro muito! E obrigada também pelos elogios.
        Em breve terá capítulo novo sobre os pokémons e espero que também goste dele.
        Abraços!

        Excluir
    2. Olá

      Bem, o que dizer?

      Não estava esperando que a uma história tomasse um rumo tão triste nesse capítulo, mas foi bem interessante.

      Tudo ia calmo e etc quando do nada surge essa notícia do casamento. A partir desse ponto eu pensei que a história caminharia para uma fuga ou algo assim e que talvez ela ter ido pra Hoenn foi o modo dela escapar. Mas não, a realidade me deu um soco e no final ela se casou mesmo.

      Ela realmente passou por muita coisa. Inclusive teve um filho, que como eu já havia comentado com vc, me surpreendeu. É uma pena que o pequeno tenha morrido.

      Acho que é isso. Como nós já conversamos um pouco, não vou ficar me repetindo. Até mais, Carol!

      ResponderExcluir
      Respostas
      1. Oii Alefin, bem, pra falar a verdade, nem eu estava esperando, a história simplesmente saiu e foi difícil escrever porque eu gosto muito dessa pokémon e a história dela é bem dolorosa.
        Muito obrigada pelo comentário, Alefin!
        Até o próximo cap!

        Excluir
    3. Oi Carol,
      O que realmente aconteceu:

      "Vendo que havia cavado uma profundidade de pouco mais de um metro, ela saltou para fora para observar a buraco que havia feito. Após isso, adentrou na terra fria e puxou a terra lamacenta para cima de si mesma. Logo seu corpo estava completamente soterrado e pouco a pouco a chuva terminava o serviço de levar a lama para cima de si. Conforme o ar deixava o pulmão da raposa e o desespero da asfixia tomava o corpo de Rubi, ela passou a tentar a se livrar de sua própria cova. Contudo ela havia planejado bem, não conseguiria escapar do destino planejado desta vez e não teria que encarar Torracat novamente."


      Ai meu deus! O que foi isso que eu escrevi?
      Prefiro sua versão dos acontecimentos, acho que a Rubi foi mais feliz com o Brendan ^^

      Até o próximo filler Carol!

      ResponderExcluir
      Respostas
      1. Que mente diabólica O-O. Alguém pare o Anão.
        Ainda bem que a Rubi está nas minhas mãos para não ter esse destino trágico haha.
        Obrigada pelo comentário, Anan! Até o próximo capítulo!

        Excluir
    4. Gente... Agora entendo pq vc quis tanto que eu lesse o capítulo da Rubi, nossa que coisa mais linda, maravilhosa, amei que você explorou todo o passado da personagem e deu toda a profundidade de antes dela conhecer o Brendan. Eu estou simplesmente sem palavras pelo que aconteceu ao longo desse capítulo, apenas posso aplaudir, manda mais que tá pouco, Rubi é simplesmente a maior das maiores, rainha de tudo e merece todo o destaque do mundo.

      ResponderExcluir

  • Copyright © - Nisekoi - All Right Reserved

    Neo Pokémon Hoenn Powered by Blogger - Designed by Johanes Djogan